23 de março de 2017

Folha de Londrina - 23/03/2017

Difícil travessia política

Sabemos que há várias cidades na cidade, porém, não podemos permitir que uma parte da população seja ignorada”

Nesta fase de crises, é preciso pensar a travessia diante das articulações possíveis entre a democracia representativa e a participativa. Isso para redefinir a função dos atores, sujeitos envolvidos nos territórios onde vivem, sejam eles urbanos ou rurais. Para esses atores, já não basta pensar, identificar os problemas, problematizá-los, mas também propor soluções. Não basta estarem atentos, compreenderem como as situações acontecem em seu território, mas atuar nele como atores críticos de organização, mobilização e de efetiva ação. 
Este comportamento cidadão possibilita uma aproximação política entre a teoria e a ação; mais que isto, permite um roteiro interpretativo que evidencia as transformações necessárias, com um teor maior de consciência e organização. A análise de Boaventura de Souza Santos parece pertinente para argumentar a nossa preocupação; diz ele que não podemos permitir que nas cidades se estabeleçam "zonas civilizadas" e "zonas selvagens", pois isto é uma forma de conceber um fascismo social.
 
Sabemos que há várias cidades na cidade, porém, não podemos permitir que uma parte da população seja ignorada, nem podemos admitir que o poder público local estabeleça suas ações apenas nas zonas civilizadas, atendidas com todas as benesses da modernidade, enquanto, de outro lado, nas zonas selvagens, há baixo nível de organização e quase nenhuma presença do poder público local. As zonas elitizadas "civilizadas", expressamente hoje manifestas em seus condomínios, horizontais e verticais, além das condições materiais dos atores endinheirados, não podem ser fortalecidas como a única forma possível de viver nas cidades distante da violência, dos perigos, dos riscos urbanos e da ausência do Estado.
 
Determinar esse privilégio é admitir que os pobres trabalhadores, desempregados e alguns segmentos médios não podem participar de forma civilizada em uma cidade planejada, organizada, colaborativa, segura, bela e sustentável. Se nos próximos anos assim procedermos, poderemos instalar definitivamente uma cidade de exceção, uma cidade perigosa, onde a mobilidade e a locomoção interna serão a cada dia mais problemáticas. Portanto, não se trata apenas de forma, mas fundamentalmente de conteúdo, um conteúdo construído e vivenciado pela população. Este construído no diálogo coletivo, que pode e deve ser construído diferentemente entre as diferentes zonas urbanas, construído com as características de sua identidade. Não há como admitir uma urbanização desigual, que gera um urbanismo excludente, como denunciava Milton Santos; antes, temos que pensar formas de articulação deste território.
 
Necessitamos pensar a cidade como um todo, com suas diferenças, peculiaridades culturais, buscar unidades possíveis no respeito à diversidade, para uma convivência necessária. Não há muitas alternativas; ou começamos já este planejamento ou corremos o risco de em poucos anos ver a cidade fragmentar-se de tal forma em que qualquer nível aceitável de sociabilidade e cidadania democrática se tornará impossível.
 
Há um trabalho intelectual crítico importante a ser feito. Entender a cultura dominante e contrapor com as formas como o povo pensa e vive, e a partir dessa influência conhecer a sua subjetividade e sua objetividade, como se interpenetram as culturas dominantes com a cultura popular. Trata-se de credibilizar os discursos e as práticas que se densificam no cotidiano. Cotidiano este palco onde ocorre a vida, organizam seu território e, destas observações, possam construir explicações inteligentes, que possam orientar as políticas e as ações correspondentes.
 

    PAULO BASSANI é sociólogo e professor da UEL   
    GABRIEL BARBOSA BASSANI é estudante de Geografia da UEL


7 comentários:

  1. Parabéns. Um belo texto com inteligência e percepção da cidade e do modelo de gestão.

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  2. É isso aí.. Boa reflexão de Bassani, parece que é com seu filho.

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  3. Brilhante. Parabéns...

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  4. Um raciocínio necessário para nosso tempo. Um tempo de dificuldades de compreender os passos necessários para superar tal estado que nos encontramos.

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  5. Com muita perspicácia.

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  6. Precisamos de esforços intelectuais como o seu, para enfrentarmos essa dificil travessia. Esse parece ser um exercício que o povo da universidade pode e deve realizar e, não buscar fazer o mesmo de sempre.

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